Um Brasil impregnado de disputas políticas e ideológicas é a imagem que arrisca prevalecer hoje no mundo, graças inclusive à leitura mediática. Luís Henrique Marques, redator chefe de Cidade Nova nos acompanha numa viagem pela sociedade brasileira, na descoberta da realidade, frequentemente desconhecida, dos muitos que agem pelo bem comum.
A julgar daquilo que os meios de comunicação comerciais divulgam quotidianamente, o Brasil parece imerso na polarização político-ideológica, como de resto acontece em outras regiões do globo.
Mas aquilo que a mídia mainstream não mostra é que a realidade brasileira não é feita apenas de disputas políticas e ideológicas. A performance silenciosa de muitos “pioneiros” desta democracia ainda jovem e inexperiente revela que há um potencial capaz de tornar as relações políticas um espaço de diálogo e um lugar para a construção da cidadania.
A revista Cidade Nova é um dos veículos comprometidos em revelar esta outra face da realidade brasileira, ainda um tanto quanto tímida, limitada a fatos isolados, mas que, no conjunto, mostra um Brasil que vai além da polarização político-ideológica.
Espaços para o diálogo
Para começar devemos reconhecer que apesar da crise criada pelas posições polarizadas no debate político-ideológico, muitos analistas tendem a olhar com otimismo e esperança para o atual cenário brasileiro. O motivo principal é que muitos cidadãos brasileiros se interessaram em compreender e discutir sobre questões políticas e relativas à administração pública, convencidos da necessidade de assumir o próprio papel de cidadãos, conscientes e participativos diante da “coisa pública”.
Multiplicaram-se e se intensificaram os assim chamados grupos de diálogo, promovidos por paróquias ou grupos pastorais da Igreja católica, grupos de outras Igrejas cristãs e outras religiões (incluídas iniciativas ecumênicas e inter-religiosas), organizações não governamentais, agremiações e outras entidades da sociedade civil. O objetivo é promover a reflexão política através do diálogo e da troca de experiências, que se intensificou sobretudo na segunda metade de 2018 em seguida ao período eleitoral. São pequenas “ilhas”, mas refletem o potencial de participação democrática dos cidadãos brasileiros.
É o caso dos grupos do Movimento dos Focolares espalhados em diversas regiões do Brasil. Motivados por um tema específico, jovens e adultos de diferentes convicções religiosas e políticas e de diferentes condições sociais iniciaram um processo de confronto sobre o cenário político atual, os seus obstáculos e as suas possibilidades. Muitos destes encontros foram além da discussão sobre o processo eleitoral e se abriram a ações concretas para a promoção de políticas públicas que favoreçam a comunidade local.
A “Escola de Cidadania”, promovida sempre pelos Focolares, é um curso online cujos temas respondem à solicitação difusa de uma nova cultura democrática e participativa. O primeiro bloco de aulas foi justamente sobre o tema do diálogo.
Outra iniciativa foi fruto da ação conjunta de diversas organizações da sociedade civil brasileira, entre as quais o Movimento Político pela Unidade (MPpU): o “Pacto pela democracia”. A iniciativa nasce com o objetivo de afirmar o pluralismo, a tolerância e a convivência com a diversidade no espaço público, e opera em três direções: reafirmar o diálogo para um confronto virtuoso das ideias; defender eleições limpas que possam representar eficazmente a cidadania e restituir as bases de confiança e legitimidade ao contexto político; realizar uma ampla reforma política ao final do processo eleitoral.
Enfim, a tradicional Campanha da Fraternidade, promovida anualmente pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) durante a Quaresma, se configura também como espaço de diálogo e promoção de ações concretas nas comunidades paroquiais sobre questões religiosas, culturais, sociais, econômicas e políticas da sociedade brasileira. Para este ano, a Campanha propõe que os fiéis reflitam sobre o tema “Políticas públicas e fraternidade”.
Embora sendo marcado por uma forte polarização político-ideológica, o Brasil cultiva, na maior parte silenciosamente, os germes de uma sociedade renovada aberta ao diálogo, solidária, lançada na direção da construção de relações de fraternidade. No espaço político e no sociocultural mais amplo.
Após ter falado das iniciativas postas em campo pelos mais variados órgãos, eclesiais e não, para promover uma reflexão política fundamentada no diálogo – entendida como resposta à solicitação crescente de uma nova cultura democrática e participativa – queremos agora pôr em luz o empenho de muitos no campo da solidariedade e do voluntariado.
Espaços de solidariedade e voluntariado
Frequentemente, de fato, a ação política é guiada por um senso de solidariedade com aqueles que sofrem. Desde 2016, quando o governo do Estado do Rio de Janeiro começou a retardar o pagamento dos salários dos funcionários públicos, além da luta nos tribunais e dos numerosos atos políticos de protesto contra este recurso, emergiu uma rede de solidariedade a favor dos trabalhadores e das suas famílias que sofreram mais por causa desta situação.
Os gestos se multiplicaram em todo o Estado, seja por parte de indivíduos seja de coletividades. Para ajudar as famílias em dificuldades uma série de organizações se mobilizaram para angariar recursos e preparar cestas básicas, para adquirir medicamentos e satisfazer outras necessidades primárias. A Arquidiocese e as outras dioceses católicas do Rio de Janeiro, assim como outras igrejas e uniões cristãs, operaram em colaboração com o assim chamado Movimento Unificado dos Funcionários Públicos do Estado (Muspe).
Uma situação semelhante viu cerca de 40 entidades brasileiras, entre religiosas e civis, trabalhar juntas para acolher refugiados provenientes sobretudo da Venezuela.
Alguns destes entes realizam ações de emergência (oferta de alimentos e medicamentos, tratamentos médicos e psicológicos), enquanto outros ajudam a obter a residência no Brasil através do acesso à documentação necessária, cursos de língua portuguesa, alojamento e trabalho. Estas entidades foram particularmente ativas na região de fronteira entre os dois países, mas também em outras regiões para onde foram enviadas famílias de refugiados na tentativa de oferecer a elas melhores oportunidades de trabalho e de alojamento.
Iniciativas deste tipo refletem o desejo de muitos brasileiros de “alcançar” continuamente aqueles que têm mais necessidade de ajuda. É talvez este impulso que justifica os dados da pesquisa “Other Forms of Work”, conduzida em 2017 e recentemente publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Segundo esta pesquisa, 7,4 milhões de pessoas fizeram voluntariado naquele ano, o equivalente de 4,4% da população de 14 anos ou mais. Por voluntariado os pesquisadores entendem o trabalho não obrigatório, realizado pelo menos uma hora por semana, sem receber uma retribuição ou benefícios em troca, por pessoas que não vivem na mesma família do voluntário e não são a sua família. Sempre segundo a pesquisa, o perfil dos voluntários no Brasil descreve principalmente mulheres que junto com as atividades de voluntariado se ocupam de trabalho profissional e doméstico.
Outro exemplo que vem do Movimento dos Focolares é Milonga, um programa que põe em contato as organizações não governamentais de caráter social de sete países com jovens que querem integrar a própria formação humana com o voluntariado, doando o seu tempo e o seu trabalho. Em outubro de 2018, 75 voluntários do projeto trabalharam em 19 organizações no Brasil, Argentina, Bolívia, México, Paraguai, Venezuela, Uruguai, Quênia e Jordânia. “Aprendi que a essência da vida não é ter, mas ser. Às vezes estamos cheios de muitas coisas, mas o que conta de verdade são as que permanecem na eternidade do momento presente”, disse Rarison Gomes, 30 anos, originário de Manaus.
A experiência do voluntariado coincide com um certo protagonismo juvenil em crescimento entre os adolescentes brasileiros que desejam passar da reflexão política à ação. Um exemplo significativo é a experiência do Coletivo Juventude Campo Cidade, nascido mais de dez anos atrás a partir de uma conversa entre amigos na cidadezinha de Poço Redondo, no interior do Estado de Sergipe, no nordeste do Brasil.
Alguns destes jovens já eram ativos em movimentos sociais no Alto Sertão Sergipano, como é chamada aquela região. Motivados pelo processo eleitoral de 2008, estes adolescentes decidiram dar vida a um programa de formação política para os jovens da região. Embora sem recursos e com escasso apoio, o grupo organizou um curso em 11 etapas com a duração de um ano e meio. Na origem do projeto uma clara tomada de consciência: era necessário se formar, conhecer a realidade, para assumir o protagonismo social na região. “Havia a sensação de querer transformar a sociedade e isto amadureceu em cada fase do curso”, diz Damião Rodrigues Souza, um dos idealizadores da iniciativa.
No final do primeiro curso, os jovens concluíram que a experiência iniciada ali deveria continuar se baseando em três pilares: formação, organização e luta. O último destes pilares se concretizou numa série de iniciativas que produziram resultados eficazes: a instalação de um campus de uma universidade pública federal na região; a construção de um teatro popular com uma capacidade de 200 pessoas na cidade de Poço Redondo (construído pelos próprios jovens); a concessão por parte do governo federal de um pedaço de terra, até então inativo, a ser destinado para o cultivo de produtos biológicos pelos jovens.
Mesmo se isolados e dispersos ao longo dos mais de oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil, estes e muitos outros exemplos de diálogo e participação política, assim como de ação concreta para a construção de uma sociedade justa e fraterna, testemunham um quadro muito mais sadio do que aquele da simples polarização política em que grande parte da sociedade brasileira foi conduzida.
Para os protagonistas destas ações, a esperança está na convicção de que os exemplos e os frutos concretos estejam em condições de capturar “seguidores” e de potencializar este protagonismo, fundamental para unir as pessoas em prol do bem comum e indo além das diferenças político-ideológicas.
Luís Henrique Marques
Source: Site Internacional